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A cidade visível*
por Cristiane Miglioranza**



As semelhanças entre o ex-soldado israelense Asef, duas senhoras do meio oeste americano e um punhado de jovens colegiais argentinos são poucas. Ou muitas. Muitas porque compartilham algum sentimento por esta cidade imponente que é Buenos Aires. Poucas porque nem sempre se aproximam os pensamentos, mesmo remotamente.

Em minhas andanças às margens do Prata encontrei diversos tipos de almas. Muitas falavam, outras revelavam com os olhos. Teve o antes combatente que, após três anos de horror na faixa de Gaza, resolveu empregar o soldo guardado em uma ambiciosa, porém simples, viagem pelas Américas, no estilo dos andarilhos que apenas se preocupam em absorver o quanto ou mais puderem do que a vida, os lugares e as pessoas podem lhes oferecer.

Tem também a serenidade, que só os anos e uma vida feliz, talvez sem muitos sobressaltos – o que pode trazer a credibilidade para dentro dos corações mais simples -, presente nos olhos das senhoras ao enxergar o belo da arquitetura de inspiração francesa e dar a ele preponderância à agitação e à Vila 31 costeando uma das mais belas cidades do mundo.

E tem ainda a indignação, casada com a certeza juvenil de que se pode mudar o mundo. Semana comum na capital portenha. Nada de mais, nem de menos. Apenas momentos únicos como o tango no Tortoni – que a cada noite é igual, mas sempre diferente –, manifestações por um docente morto no interior deste país vasto mas pontualmente habitado por requisitar o salário que lhe era de direito, choro e indignação pela morte de muitos por um incêndio onde ninguém assume responsabilidade. E a favela, que segundo a guia argentina, foi alvo de tentativas de erradicação de muitos governos, todas falhas.

Há muito mais além da Calle Florida, das cores de um Camiñito nostálgico e da riqueza de Puerto Madero. Há vida, vida perceptível nos tangos e também nas entrelinhas do trabalho de gente como Carlos Gardel.

Estas são apenas impressões. Se Calvino foi feliz em retratar cidades invisíveis, tento aqui deixar um retrato meu sobre uma cidade visível e com diversas realidades.


*O título é uma referência ao livro As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. Para que compreendas a analogia, recomendo que leias o clássico da literatura italiana. Juro que não vais te arrepender.

**Cristiane Miglioranza é jornalista e atua no conselho editorial do jornal Cadafalso.

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