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Volumes Alcoólicos - Textos

MORTE POR TESÃO
Por Raisa


Outro dia nublado e agora havia um prédio de cores suaves, eu apenas precisava observar e reservar cada janela a uma etapa do dia, o tempo limitador e as criaturas repetindo ações. Nuvens de mau humor era a grande afetação daquele idoso, estava cego. Alguns retratos amarelados figuravam sua parede desbotada, garrafas de uísque intocadas e uma temática que só me apontava um verbo: sobreviver. Acredito que eu e ele amávamos cada pedaço daquele apartamento com cheiro de terceira e derradeira idade, me apeguei novamente a sensação familiar de cada instante que o observava, ouvindo a televisão ele se fazia ainda jovem, queria estar no auge novamente ou desejava a morte, dois grandes olhos cegos e vagos, talvez desde criança ou um acidente ferroviário, sempre preferi os navios e a vontade dos uísques me conduzia a simular o gosto de cada copo cheio de pó, estava ali como voyeur, fatídico destino que para o poço de visões sem ação me arrastou, lamentei.


Cama e móveis coloridos, um ambiente moderno e talvez agradável para meninos-meninas-e-até-animais, eu ficava um tanto quanto perdida nos símbolos e cega nas portas, estava ali também e não podia recusar. Inevitavelmente me atiro nessas vidas alheias com sabores distintos e em cada anotação tudo fica mergulhado, as paredes encardidas de vinho e esperma, sujos e jovens. Enfermeira e de olhos castanhos-profundos-latentes, bonita e condizente com os padrões de magreza-idade-beleza, estava diante e participava da moda nas ruas, perdida e só, mais uma de calças jeans e blusas em tom pastel, uma a mais. Baixo e de careca, proprietário das paredes coloridas e dono provável do esperma que as manchava, arquiteto e fã incorrigível de New York Dolls, a temática ali era a banda, observava a fama não como conseqüência e sim como um território a ser explorado, entretanto era um músico medíocre e um projetista conceitual, fatalidades e as divergências na série querer-poder.


Juvenil era todo aquele quarto, sempre iniciar pela adjetivação e ir traçando cada rabisco torto na tela azul, uma camiseta branca e a maldita canção ao fundo. Exatos quinze anos naquele dia, fervilhando em hormônios e indecisões, talvez precisasse de um novo corte de cabelo, não preferia nem meninas sequer meninos ou eletrodomésticos, a condição de apatia era incomoda e ele nunca se livrava da prisão, quinze anos e nenhum cigarro. Seu avô era cego e aquele apartamento não estava de acordo com suas necessidades, uma contrabaixo que não devia ser tocado, o garoto ousava e a canção continuava, chama-se: “morte por tesão”.


Excitados ao entardecer, o céu era roxo e coberto de nuvens, ela vestida de branco, unhas curtas e cabelo preso, os olhos fixos no vazio interior, corria dentre os sinais coloridos de cada rua, corria e ele estava lá a esperando, descompassado e burro no próprio sonho, escutava um disco de seus mentores e pensava no sexo que viria a seguir, apenas o estar-dentro-dela sem nenhuma palavra, os gemidos que soariam bonitos e os suores que escorreriam salgados. A televisão tem sentido vago, apenas escutar e não poder delirar com aquelas formas e cores expostas, era o universo sem toque e guiado por vozes,um cordão o puxava, ele pensava que era um velho-inútil-sustentando-por-uma-corda,marionete da própria tristeza, in-vá-li-do. Acordes péssimos, não culpava a falta de talento e sim a sorte que se esvaía a cada banho, devia ter nascido antes para morrer agora, desafiando as virtudes, overdose de remédios ou até um amor sem nenhuma sobriedade, in-sa-tis-fa-ção.


Há um ponto em que todas as retas se tocam, histórias cruzadas como cheques, tudo atribuído em valores, era o gozo intenso e a falta de lençol. As paredes do banheiro existiam para abrigar manchas, assim como a mesa foi concebida para repousar, havia uma lógica em sentir cada pedaço do alojamento usando o corpo, era ele e ela, eram eles, e nunca um apenas, não havia amor romântico. Ele desejava vingar suas frustrações na transa que ocorria e ela queria apenas esquecer o asco dos doentes terminais, corriam nus e não havia afeto algum, era apenas preencher ou ilustrar a vida, gemidos-esperma-almofodas.


Culinária não lhe interessava, a filha sumiu no mundo e deixou um menino com a estranha obsessão por música, malditos ouvidos que ainda relembravam uma vida além daquela já concebida, recebia um dinheiro que compensava o abandono, mas nunca devolvia a luz roja dos bordeis que freqüentavam quando jovem, moças bonitas e ele enxergando, acontecia naturalmente no interior. Imprestável a ponto de se desligar no tempo, parou no suspiro sob o caixão da esposa, ainda tinha cabelos, escolheu ser conduzido pelo fluxo. A empregada vinha duas vezes na semana, arrumava os cômodos ou simplesmente enganava o idoso nefasto, talvez restasse algum sonho, fumava na sacada e ele sentava em frente à caixa iluminada, em silêncio ambos imploravam um resgate, os sinais de fumaça voando junto as cortinas, a morte significava redenção, forma e desejo.


O primeiro acorde e depois todos os outros, cantava junto e sentia um êxtase, berrava alto e ainda assim ouvia os gemidos, flutuava e dizia “eu queria que ela morresse de tanta satisfação/eu queria que ela morresse de morte por tesão”, era o caldeirão e o poço, estava livre e exausto, acordes e o despertar, pulsava junto com aquela sinfonia mágica que completava o barulho dos carros. Esgotados, se vestiam; o sexo continuaria durante a semana, dias de chuva e noites chuvosas, enquanto houvesse tempo e capacidade, é preciso se auto-completar. O barulho dos carros, a televisão ligada, um bocado de fumaça do segundo cigarro que ligeiramente impregnava todas as janelas, “eu queria ser um selvagem/pra ser o rei da sacanagem”, a morte. O céu estava igual, o agência imobiliária funcionando,alguns homens aproximaram-se, ela após o preenchimento e de cabelos ainda molhados tentava cumprimentar uma ex-paciente, a bala perdida que encontrou o corpo,sem alertas os sinais apagavam-se, não havia hospital, apenas barulho. O sangue era o fluxo, satisfação-visão-frustração e enfim a redenção. Ela merecia.

Um comentário:

Raisa. disse...

oh que honra!
Obrigada por postar queridito.

=*